Dinalva Heloiza
Nestes tempos ainda sombrios, em que a brutalidade parece banal e a dor do outro tantas vezes é tratada como ruído de fundo, a Global Sumud Flotilla rompe um silêncio mortal, não apenas com sua frota navegando pelo mar Mediterrâneo, rumo a Gaza em uma ação humanitária, mais ainda em um gesto que de forma universal, reacende uma chama global no seio da humanidade.
Mais do que uma missão, ela é um
símbolo: um corpo coletivo navegando contra a maré da indiferença. “Sumud”, em
árabe, significa firmeza, constância, mas neste movimento seu sentido se
expande, transformando-se em chamado ético, pulso humanitário, lembrança de que
resistir também é lutar, e com a força do amor pelo outro, de longe, de perto,
em alto-mar.
Não se trata apenas de ajuda
humanitária, mas de humanidade em movimento. Mais de 40 barcos partiram de
diferentes cantos do mundo levando medicamentos, alimentos, água potável, e
muita solidariedade com a dor do outro. Transportando acima de tudo, um
sentido: a recusa de aceitar que vidas civis — crianças, mães, idosos — sejam
tratadas como dano colateral e escudo de guerra, por todos os grandes líderes
globais e os responsáveis por esse genocídio em massa.
Ao atravessar o mar rumo à Faixa de Gaza, a flotilha não desafia apenas bloqueios físicos, mas também os bloqueios emocionais que nos anestesiam diante do sofrimento alheio. Cada embarcação nos faz refletir pelo verdadeiro sentido da vida.
Essa travessia de coragem, porém,
já se encontrou com o peso da tirania. Entre a noite de 1º de outubro e a
madrugada do dia 2, a marinha de Israel interceptou alguns barcos da Flotilha -
em águas internacionais -, quando os barcos se aproximavam do enclave
palestino. A interceptação alcançou várias embarcações, que foram impedidas de
seguir.
Segundo fontes, centenas de manifestantes
já foram detidos, entre elas a ativista climática, sueca, Greta Thunberg e 11
brasileiros: Thiago Ávila, da coordenação da missão; Bruno Gilga, porta-voz da
delegação; a deputada federal Luizianne Lins do PT; a vereadora de Campinas
Mariana Conti do PSOL; e os ativistas Ariadne Telles, Gabriele Tolotti, Lisiane
Proença, Lucas Gusmão, Magno Costa, Mansur Peixoto e Mohamad El Kadri, libanês-brasileiro.
Nicolas Calabrese, argentino residente no Brasil e parte da delegação, também
estão entre os presos.
O brasileiro Thiago Ávila - um dos cordenadores da missão e a sueca e ativista ambiental Greta Thunberg - Ambos agora presos por Israel.
Há ainda a incerteza sobre o destino do veleiro Mikeno, que leva o brasileiro João Aguiar. Rastreamentos da navegação indicaram que ele poderia ter alcançado águas territoriais de Gaza, mas não houve mais sinais. Horas depois, veículos independentes afirmaram que o barco teria sido interceptado já dentro da costa palestina — informação ainda não confirmada pela missão.O governo brasileiro condenou a
ação militar, recordando o princípio da liberdade de navegação em águas
internacionais. Em comunicado, afirmou deplorar uma ação que viola direitos e
põe em risco a integridade física de manifestantes pacíficos, responsabilizando
Israel pela segurança dos detidos. Também pediu o fim imediato e incondicional
das restrições à entrada de ajuda humanitária em Gaza, conforme determina o
direito internacional.
A coragem da Flotilha nos obriga
a reavaliar o que é heroísmo. Não se trata de glória, mas de uma coragem
silenciosa, feita de escolhas e presença. Homens e mulheres comuns, de
diferentes nacionalidades, arriscam-se não porque ignoram o medo, mas porque há
algo que pesa mais: a responsabilidade ética de não se omitir.
Em meio ao ruído das estatísticas, cada barco reivindica a dignidade como direito inalienável: ninguém deve viver privado de água, de alimento, de reconhecimento. Gaza não é apenas um número de mortos ou toneladas de destruição. Gaza é pessoa. Entregar um litro de água em meio à sede imposta é entregar também a mensagem: “nós te vemos, e você importa.”
A esperança que navega contra a
maré talvez seja o gesto mais luminoso. Mesmo sabendo que poderiam não chegar,
que talvez não mudassem estruturas, eles partiram. Porque a travessia em si já
é mensagem. Porque o simples ato de se mover em direção à dor do outro já é
reparação.
E é nesse movimento que a Flotilha
se torna espelho para nossas consciências: até quando naturalizaremos a
injustiça quando não nos atinge diretamente? O que significa ser neutro diante
do sofrimento de um povo inteiro? De que lado estamos quando escolhemos o
silêncio?
A Global Sumud Flotilla é feita de barcos, mas sobretudo de laços — de solidariedade, de afeto político, de compromisso ético. E, apesar da interceptação, sua mensagem segue navegando: resistir é também cuidar; e a humanidade não está perdida, apenas adormecida; e que talvez, ao ver esses barcos, algo em nós desperte.
No fim das contas, é isso que
permanece: seguir mesmo com medo, atravessar mesmo sem garantias, cuidar mesmo
à distância, amar mesmo em meio à escuridão.
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