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terça-feira, janeiro 14, 2020

Direito à educação com igualdade de gênero

Avanços jurídicos e políticos no sentido de garantir a igualdade de gênero na educação encontram fortes obstáculos para sua concretização nas escolas de diversos países da América Latina e do Caribe. Barreiras culturais, falta de vontade dos governos e avanço de tendências fundamentalistas conservadoras e religiosas afetam meninas e mulheres - Fabíola Munhoz
Coordenadora de comunicação e mobilização da Clade - Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação.

Como Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade), temos acompanhado os desafios e os avanços para a garantia da igualdade de gênero e o respeito à diversidade na educação em nossa região e no mundo.

Meninas e mulheres são discriminadas durante a educação em termos de acesso, permanência, conclusão, tratamento, resultados de aprendizagem e escolhas de carreira, o que resulta em desvantagens que vão além da escolaridade e do ambiente escolar.

A presença de estereótipos de gênero nos currículos, livros didáticos e processos de ensino, a violência que enfrentam dentro e fora da escola, restrições estruturais e ideológicas e a dominação masculina em determinados campos acadêmicos e profissionais são fatores que impedem meninas e mulheres de reivindicar e exercer o direito humano à educação em condições de igualdade.

A Recomendação Geral n. 36 do Comitê CEDAW, da ONU, aponta alguns desses desafios e sugere aos Estados que promulguem e apliquem leis, políticas e procedimentos apropriados para proibir e combater a violência contra meninas e mulheres nas instituições educativas e seus entornos. Propõe também que sejam desenhados e aplicados currículos obrigatórios com informações integrais sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Consideramos essa recomendação um instrumento de direitos humanos muito importante, que deve ser usado na luta contra o patriarcado, por igualdade e pelos direitos de meninas e mulheres.

Outro instrumento que se aplica a essa luta é a Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), adotada pelos Estados-membros da ONU em 2015, que reconhece que “a igualdade de gênero está inextricavelmente ligada ao direito à educação” e estabelece o compromisso de garantir uma educação inclusiva e de qualidade para todas e todos, e eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas até 2030.

Na última década foram observados avanços com relação à inclusão da perspectiva de gênero na educação em distintos países da região, conquistas que têm sido alvo de grupos conservadores que tentam impedir a continuidade e a concretização dessas mudanças, ou mesmo querem promover retrocessos em relação ao que já se havia avançado. O seguimento dessas transformações enfrenta barreiras culturais, falta de vontade dos governos e avanço de tendências fundamentalistas conservadoras e religiosas, que invocam a existência do falso conceito de “ideologia do gênero” para promover mobilizações, ações judiciais e campanhas de desinformação, entre outras estratégias, contra a realização de uma educação laica e com enfoque em direitos, o que inclui abordar nas escolas a igualdade de gênero, a diversidade sexual, o direito à identidade de gênero e a educação sexual integral. Trata-se de uma tendência regional que abarca países como Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Peru, Paraguai e Uruguai.

No caso do Brasil, o movimento Escola Sem Partido vem promovendo propostas legislativas e outras ações para proibir a abordagem das questões políticas e relacionadas a gênero e orientação sexual na educação. Também se observam retrocessos para a igualdade de gênero no conteúdo da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e no fato de terem excluído a referência a “gênero” do Plano Nacional de Educação e de outros planos estaduais e municipais de educação aprovados no país. Outro retrocesso foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de setembro de 2017 que determinou a constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas, o que contribui para a censura da abordagem de questões relacionadas a gênero e sexualidade nos centros educativos.

Na Colômbia, a elaboração no âmbito do Ministério da Educação de um guia que abordava o tema das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas na escola, dirigido a docentes e com o objetivo de adequar os manuais de convivência escolar à diversidade sexual e à não discriminação, gerou enérgicos questionamentos de grupos ultraconservadores e confessionais fanáticos do país.

Já na Costa Rica, um programa de estudos para a afetividade e a sexualidade integral do Ministério da Educação, que seria colocado em prática este ano, tem gerado forte rechaço por parte de setores religiosos fanáticos, que entendem que esse programa promove a “ideologia de gênero” nas escolas. No Equador, sob o slogan “Con mis hijos no te metas”, são organizadas mobilizações e marchas contra iniciativas legislativas vinculadas à igualdade de gênero e para que não seja incluído o enfoque de gênero nos currículos educativos.

No Peru há fortes questionamentos à introdução de um novo Currículo Nacional de Educação Básica, que inclui o enfoque de gênero, a promoção da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, a construção da identidade de gênero e a educação sexual integral.

No Paraguai, uma resolução do Ministério da Educação proibiu a difusão de materiais que abordam a questão de gênero em instituições educativas. No Uruguai, a Justiça negou demanda apresentada por um conjunto de pais e mães contra a divulgação de uma proposta didática para a abordagem da educação sexual nas etapas inicial e primária de ensino.

Desigualdades e discriminações por trás das estimativas educativas

Em geral, os países da América Latina e do Caribe avançaram de modo substantivo em relação à paridade entre homens e mulheres nas estatísticas educativas, tanto no acesso quanto no desempenho escolar. No entanto, persistem graves obstáculos para a realização plena do direito humano à educação de meninas e mulheres, que vão muito além do acesso escolar ou do tratamento que elas recebem nas escolas.

Entre as principais barreiras estão o trabalho infantil (especialmente o doméstico), o matrimônio e a gravidez precoces, conflitos armados – que afetam de maneira especial meninas e mulheres –, a situação de pobreza, a influência de religiões nas decisões sobre a política educativa, entornos escolares perigosos e violentos e, principalmente, práticas discriminatórias que se repetem nas escolas, refletindo construções ideológicas e culturais machistas, patriarcais, heteronormativas e heterossexistas dominantes em nossas sociedades, as quais violam um conjunto de direitos humanos, sobretudo o direito a uma vida digna, livre de violência e discriminação.

Para além da educação, permanecem outras fortes injustiças contras as mulheres: sua reduzida representação política e os salários desiguais que recebem, sua responsabilidade quase exclusiva pelo trabalho doméstico e o cuidado das pessoas, a criminalização do aborto e a violência, e os índices de feminicídio na região continuam alarmantes.

Todos esses elementos revelam que a igualdade de gênero ainda está longe de ser realizada plenamente, e a mudança desse cenário depende de uma transformação cultural e da mudança de pensamentos enraizados, o que entendemos que só se tornará possível por meio da reflexão e do olhar crítico sobre a realidade, elementos esses que podem e devem ser promovidos na e pela educação.

Como a educação sexual integral pode promover a igualdade de gênero

Especialistas consideram que a educação sexual integral implica reconhecer, desde a infância, meninos e meninas como seres sexuados, de forma informada, livre, responsável, e sem vincular a sexualidade e o diálogo sobre gênero apenas à questão reprodutiva, e sim tratando esses temas de uma perspectiva sociocultural.

Para esses especialistas, a educação sexual integral não tem apenas relação com a reprodução, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez precoce, ou a mudança no corpo dos estudantes durante a puberdade. A educação sexual integral vai além desses fatores e inclui o conhecimento sobre o próprio corpo e seu cuidado, a reflexão sobre os sentidos e significados da sexualidade e as vinculações e relações entre meninos e meninas.

Graças a esse olhar, professores e estudante podem reconhecer e valorizar as diferenças e similaridades entre os gêneros, superando estereótipos e preconceitos, trabalho importante de realizar desde a educação infantil, não apenas na adolescência, pois a educação sexual integral tem também o papel de prevenir e combater casos de violência contra crianças, por meio do espaço de diálogo e da relação de confiança que se cria entre estudante e docente.

A educação deve trazer uma reflexão sobre os gêneros, não como uma divisão sexual anatômica que justifica diferenças, mas como construções sociais sobre os conceitos de feminilidades e masculinidades em nossas sociedades.

A “Consulta sobre a discriminação na educação na primeira infância”, lançada pela Clade em 2014 e realizada com mães, pais, crianças, docentes e profissionais de escolas de educação infantil de Brasil, Colômbia e Peru, revela que a discriminação por razão de gênero se manifesta já no convívio entre estudantes da educação inicial. A consulta mostra também que há uma grande abertura de meninas e meninos dessa faixa etária para, orientados por um educador, identificar determinados comportamentos como incorretos (por exemplo, impedir uma colega de jogar futebol porque é “menina”) e rever as próprias posições com base em novas experiências.

O primeiro passo para superar a discriminação é reconhecer que ela existe em todas as modalidades e etapas educativas. Defendemos que todas e todos devem ter igual acesso aos direitos à educação para a igualdade de gênero e à educação sexual integral, pois discutir essas temáticas representa não apenas abordar os direitos de meninas e mulheres, mas também refletir sobre os papéis e os estereótipos atribuídos aos gêneros em nossas sociedades, o que inclui questionar e reconstruir nossos conceitos de feminilidades e masculinidades, para que sejam mais sensíveis e responsáveis e busquem a construção de sociedades cada vez mais inclusivas, pacíficas e democráticas. Nesse caminho, é fundamental que a educação promova, para meninos e meninas, o aprendizado por meio da livre expressão, do autoconhecimento e do reconhecimento das próprias identidades e sexualidades.

Distribuição desigual de funções e falta de representatividade

A maioria dos docentes em nossa região hoje é formada por mulheres, especialmente na educação infantil. Isso acontece porque as mulheres, em geral, são relacionadas a funções de educação e cuidado ou a áreas do conhecimento relacionadas à sensibilidade, à subjetividade, à intuição e a áreas humanas, enquanto os valores de racionalidade e objetividade geralmente são atribuídos a homens e meninos.

Esses preconceitos e estereótipos afetam o direito de meninas e mulheres de escolher profissões, funções e campos de conhecimento que querem desempenhar e nos quais querem se desenvolver. A falta desse debate e dessa problematização nas escolas é o que leva à persistência e à reprodução de pensamentos machistas e discriminatórios, que infelizmente hoje acompanham meninos e homens em suas trajetórias na educação e na sociedade.

Também faltam representatividade, reconhecimento e valorização das meninas e mulheres nos planos, conteúdos e práticas escolares. São inúmeras as mulheres que foram e têm sido fundamentais para a transformação de nossas sociedades rumo à igualdade, à garantia de direitos para todos e à superação da violência e da discriminação, e que pela relevância de sua luta deveriam ser citadas em sala de aula.

As celebrações do Dia Internacional da Mulher em anos anteriores homenagearam de maneira especial as mulheres ativistas, chamando a atenção para os altos níveis de violência de que são alvos essas defensoras dos direitos humanos em todo o mundo e fazendo um chamado aos Estados para que garantam proteção e justiça a essas mulheres.

O Dia Internacional de Luta contra a Violência Sofrida pelas Mulheres é celebrado pela ONU em 25 de novembro, data em que, em 1960, as três irmãs Mirabal – Minerva, María Teresa e Patria –, conhecidas como “Las Mariposas”, foram assassinadas por terem formado um movimento de oposição direta contra a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana. Infelizmente, casos como esse não ficaram só na história. Em 3 de março de 2018 relembramos também o aniversário de dois anos do assassinato de Berta Cáceres, ativista pelo meio ambiente e líder indígena de Honduras. Poucos dias depois, recebemos com estarrecimento e indignação a notícia do assassinato brutal de Marielle Franco, vereadora feminista, negra, lésbica e lutadora pela igualdade e contra a discriminação e a violência, no Rio de Janeiro.

Casos como esses não podem ficar impunes, e abordá-los na educação e em outros âmbitos e espaços de nossa sociedade é fundamental, para que essas formas de violência e injustiça tenham sua existência reconhecida e, com isso, sejam superadas.

*Fabíola Munhoz é coordenadora de comunicação e mobilização da Clade.
Artigo publicado em Novembro de 2018, e diga-se bastante atual. Originalmente no site do Jornal Le Monde Diplomatique.

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