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sábado, outubro 20, 2018

Ministério Imprescindível - Por Marina Silva

Convidamos Marina Silva à nos discorrer sobre a importância que o Ministério do Meio Ambiente tem para o país. E ela nos deu a honra de publicar, em primeira mão, um artigo dela sobre o assunto. * Árvore Ser Tecnológico NT. ao final. 

Por Marina Silva 

Marina Silva, política brasileira, ex Ministra do Meio Ambiente Brasil e presidenciável nas eleições nacionais (2010/2014/2018) 



A notícia de que o candidato Jair Bolsonaro pretende acabar com o Ministério do Meio Ambiente, incorporando-o ao Ministério da Agricultura e impor uma severa agenda de retrocessos na governança socioambiental do Brasil é motivo de extrema preocupação para toda a sociedade brasileira e planetária.

A urgência de mudarmos a forma como tratamos com os recursos do planeta é um consenso científico, popular, empresarial e governamental ao nível local, nacional e internacional. É amplamente conhecido o grau de degradação dos solos, das águas, o aumento das secas e enchentes, a elevação da temperatura, a contaminação do ar e a perda de florestas e biodiversidade em geral e em toda parte. Esse quadro preocupante não só afeta a vida das gerações atuais, mas, sobretudo, as das próximas gerações e as populações mais pobres do Brasil e do planeta.

Diante dessa dura realidade, a ONU vem trabalhando desde 1972, quando realizou a primeira conferência global sobre Meio Ambiente, buscando sensibilizar e mobilizar pessoas, empresas e governos para empreender esforços para deter o avanço da degradação ambiental e desenvolver tecnologias e processos produtivos compatíveis com a conservação do planeta em condições de equilíbrio. Felizmente, avanços importantes vem sendo progressivamente obtidos, tanto nas políticas públicas nacionais, estaduais e municipais em todo o mundo, como na ciência, no comportamento das empresas e dos consumidores e também na agenda multilateral dos países.
Diversos tratados e convenções internacionais foram firmados para lidar com muitos dos problemas criados pelo modelo de desenvolvimento vigente, como o aquecimento global, a perda de terras agricultáveis, a poluição da atmosfera, a poluição dos recursos hídricos e oceanos, o risco do comércio internacional de substâncias químicas e agrotóxicos perigosos e a perda acelerada da diversidade biológica.

Apesar desses esforços, a situação vem se agravando a cada ano e, junto com ela, outro inaceitável problema continua assombrando o mundo: o persistente e crescente quadro de pobreza da maior parte da população global. Isso fez com que a ONU desse um passo ainda mais forte no sentido de mobilizar a comunidade internacional para assumir novos e urgentes compromissos que devem ser implementados até o ano de 2030. A esse elenco de medidas e compromissos a ONU chamou de Agenda 2030, lançado em 2015.

Esse esforço envolveu 193 países que reconheceram que erradicar a pobreza é o maior desafio global e que isso só pode ser alcançado pela proteção do meio ambiente e pelo uso cuidadoso dos recursos naturais.

A Agenda 2030 é, portanto, um plano de ação para cidadãos, governantes e empresas para proteger o planeta, as pessoas mais vulneráveis e promover a paz. Ela está organizada em torno de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, e tem 169 metas correlatas. Para se ter uma idéia da centralidade do tema ambiental nessa agenda estratégica, 10 dos 17 ODS e 70 das 169 metas se referem diretamente à questão da proteção da diversidade biológica e uso sustentável dos recursos naturais.

Se olharmos para nosso país, veremos que a necessidade de proteção dos nossos recursos naturais e biodiversidade é vital para nosso desenvolvimento. Somos uma nação que depende fortemente desses recursos. Nossa matriz elétrica é composta de 68% de fontes hidráulicas, ou seja, é dependente das chuvas, que por sua vez dependem das condições climáticas gerais e da preservação de biomas como a Amazônia, a qual lança na atmosfera 22 bilhões de toneladas de vapor de água por dia. Nossa agricultura também depende das chuvas e da qualidade dos solos e dos demais serviços ecológicos prestados pela biodiversidade, como a proteção dos mananciais e a polinização, por exemplo.

Costumo dizer que só somos uma potência agrícola global porque somos uma potência mundial em recursos naturais. Temos mais de 300 milhões de hectares de terras agricultáveis, clima, água e condições favoráveis à produção de alimentos. Mas essas condições podem ser perdidas se não formos capazes de usar com cuidados e limites esses recursos. Já perdemos quase 20% da Amazônia, mais de 90% da Mata Atlântica, cerca de 50% do cerrado, já temos cerca de 80 milhões de hectares de terras agrícolas degradadas pelas práticas inadequadas e quase 100 milhões de hectares de terras vulneráveis à desertificação.

Além disso, temos uma responsabilidade ética nacional e global e uma oportunidade de promover um desenvolvimento diferenciado no Brasil sem precedentes. Abrigamos 12% de toda a água doce disponível no mundo, somente o rio Amazonas lança no oceano Atlântico 20% de toda a água que é vertida por todos os rios do mundo em todos os oceanos. Somos também o país que reúne a maior quantidade de tipos de plantas e animais do mundo. Abrigamos 22% das espécies vivas que existem no planeta e temos biomas únicos como o pantanal, a mata Atlântica, a caatinga e o cerrado e a maior porção da Amazônia.

Toda essa monumental riqueza natural convive com uma riqueza social maravilhosa que são nossas populações de índios, quilombolas, pescadores artesanais, geraizeiros e outros grupos extrativistas que detém valiosos conhecimentos milenares associados ao uso dos recursos naturais e que foram fundamentais para manter parte desse acervo protegido da destruição até o momento.

Sucessivos governos, passando pelos períodos democráticos e autoritários, deram, cada um à sua maneira, uma contribuição para dotar o Brasil de uma base institucional para fazer frente a esses desafios e aproveitar as imensas oportunidades de desenvolvimento que esse patrimônio socioambiental nos oferece.

Em quase 60 anos de história criamos um conjunto de leis, instituições e políticas públicas para orientar à forma como podemos usar e preservar toda essa riqueza natural. Esse acervo institucional, base da governança socioambiental, é composto de mais de 20 leis federais abrangentes que versam sobre temas como recursos hídricos, crimes ambientais, educação ambiental, áreas protegidas, poluição, patrimônio genético, conhecimento tradicional associado, OGMs e seus derivados, proteção das florestas e dos biomas, combate ao desmatamento, fomento à aquicultura e à pesca, resíduos sólidos, desertificação e mudanças climáticas.

Umas das mais importantes dessas leis é a Lei 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente como principal instrumento para estruturar o conjunto de instituições, atores sociais e políticas públicas nas três esferas de governo, no que foi chamado de Sistema Nacional de Meio Ambiente. Esse sistema é composto pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) como órgão superior, o Ministério do Meio Ambiente como órgão central, Ibama como órgão executor e os órgãos estaduais e municipais como órgãos seccionais. Posteriormente, a criação de outros órgãos federais como a Agência Nacional de Águas, o Serviço Florestal Brasileiro e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ampliou ainda mais a capacidade executora do governo federal.

Embora possa soar enfadonho rever toda essa história, é fundamental mencioná-la para oferecer a dimensão do retrocesso que significa essa proposta absurda de acabar com o Ministério do Meio Ambiente ou de rebaixá-lo à condição de um departamento ou setor do Ministério da Agricultura ou de qualquer outro ministério. Não se trata apenas de uma mudança trivial nas caixinhas do organograma do governo federal ou medida de uma suposta racionalidade administrativa. Significa a interrupção proposital, a serviço de uma parcela diminuta da sociedade brasileira, atrasada do ponto de vista de concepção de desenvolvimento e voltada apenas para seus interesses financeiros, de um processo de conquistas e avanços rumo à construção de políticas públicas mais inteligentes e mais duradouras para a nação. Representa também o desmonte de todo esse sistema de governança pública ambiental que é referência no mundo e que custou investimentos do Estado e da iniciativa privada ao longo de décadas.

Essa é uma idéia que, além de estar direcionada a interesses muito claros, expressa também uma atroz ignorância a respeito de todo o conhecimento acumulado em termos de visão de mundo, história, ciência, e vai na contramão do consenso que já está formado na opinião pública. Inúmeras pesquisas mostram que o brasileiro é totalmente contra a destruição do meio ambiente, mesmo quando seja para gerar lucros de curto prazo. Os brasileiros querem prosperidade e preservação da natureza ao mesmo tempo.

Quando olhamos nações que têm alguma semelhança com o Brasil, seja em termos de desenvolvimento econômico ou de potencial de recursos naturais, como é o caso dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) ou dos 17 Países Megadiversos (Brasil, Colômbia, México, Venezuela, Equador, Peru, Estados Unidos, África do Sul, Madagascar, República Democrática do Congo, Indonésia, China, Papua Nova Guiné, Índia, Malásia, Filipinas e Austrália), que juntos concentram cerca de 60% de todas as espécies de plantas e animais do mundo, vemos que todos eles têm estruturas de governança ambiental robustas e que todos dispõem de ministérios do meio ambiente ou órgãos com nomes diferentes mas que tem funções, responsabilidades e status equivalentes.

Se persistir uma idéia insana e desavisada como essa anunciada pelo candidato Bolsonaro, seremos motivo de assombro e escárnio no mundo. Só para dar um exemplo de como caminha a humanidade, a China, que é sabidamente uma nação complexa, antidemocrática e que enfrenta graves problemas ambientais, mudou este ano o nome do seu antigo Ministério da Proteção Ambiental para Ministério da Ecologia e Meio Ambiente. Isso não representa apenas uma mudança superficial, mas, sim, um turning point na visão estratégica de inserção do país na economia do século 21. A China, que passou o século 20 pirateando produtos e destruindo seu meio ambiente, desponta no século 21 como uma nação que gera produtos de alto valor agregado e que investe pesado na recuperação ambiental e de suas florestas e investe maciçamente no desenvolvimento cieníifico e tecnológico na área de geração de energia de fontes renováveis, como a eólica e a solar, já liderando o mercado mundial desses equipamentos.

Vale lembrar também, que caso o Brasil opte pelo caminho errado, estará colocando em risco a própria inserção dos produtos brasileiros nos mercados internacionais, especialmente os da agropecuária, pois com a aceleração da destruição da Amazônia e de outros biomas as emissões de gases estufa aumentarão muito e, seguramente, o Brasil enfrentará barreiras não tarifárias de médio prazo e, à medida em que avancem os acordos referentes às mudanças climáticas, podemos ver nossa competitividade prejudicada fortemente pela criação do imposto sobre as emissões de carbono. Preservar o meio ambiente é tema fundamental do século 21 e o Ministério do Meio Ambiente é não somente necessário, mas absolutamente imprescindível!

Sabemos que a estrutura de governança ambiental no Brasil carece de muitos aperfeiçoamentos. Destaco, como uma das mais importantes, o fortalecimento das políticas públicas de incentivo ao cumprimento das leis ambientais e de apoio aos produtores para que possam ter acesso a crédito, assistência técnica e incentivos fiscais para incorporarem as técnicas e boas práticas de produção já desenvolvidas pelos centros de pesquisas como a Embrapa, no caso do setor agrícola, universidades e centros tecnológicos e empresas de vanguarda nos outros setores, e que estão conseguindo ser rentáveis e competitivas globalmente respeitando as leis ambientais e protegendo o meio ambiente. Esse aperfeiçoamento implica, obviamente, também introduzir melhorias na eficiência da gestão dos órgãos ambientais para que cumpram sua missão constitucional com celeridade e qualidade.

Espero que o próximo Presidente da República, seja quem for, dê sua contribuição para o fortalecimento e aperfeiçoamento da governança ambiental do país e para que ecologia e o meio ambiente sejam vistos como oportunidades e não como problemas para o nosso desenvolvimento. Que o artigo 225 da Constituição Federal que estabelece que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, continue sendo valorizado, respeitado e cumprido.

Vale lembrar que cabe aos cidadãos exercerem o democrático poder de controle social do governo para que os verdadeiros interesses de todos sejam adequadamente respeitados e que, aquela parcela da população que ainda não entendeu o valor do desenvolvimento com sustentabilidade, possa ser convencida dessa necessidade e oportunidade histórica que temos diante de nós.

Ecologia deve rimar com economia. Economia deve rimar com inclusão e esta, por sua vez, com democracia, justiça, paz e felicidade. Esses ideais civilizatórios estão na agenda 2030 do mundo. Espero que a sensatez volte ao palco político, que o Brasil continue tendo voz e ações relevantes no debate dos temas centrais do mundo no século 21 e que não se desgarre da história fazendo a isolada viagem de volta à ultrapassada agenda de progresso dos primórdios do século 20 e ao discurso primário e descabido agora repetido como ameaça.
Texto publicado originalmente na página Árvore, Ser Tecnológico  

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